Mesmo em um cargo diplomático, você ainda enfrenta preconceito racial?
Por ser consulesa, sou convidada a frequentar os melhores ambientes, onde sou muito bem tratada. Hoje, enxergo o que é ser privilegiada e entendo por que as pessoas não querem abrir mão disso. Mas nem sempre é assim: algumas pessoas ainda pensam que eu deveria me contentar em ser consulesa –e talvez deixar de erguer a minha voz contra o racismo. Nos lugares em que as pessoas não sabem quem sou, sofro o mesmo tipo de racismo praticado contra toda mulher negra no Brasil.
Pode dar alguns exemplos?
Já aconteceu de eu ir até o mercado, comprar produtos importados, e ser seguida pelo segurança durante as compras. Há também as pessoas que dizem: “Nossa, você é uma negra articulada!”. Como se ser articulada fosse um privilégio das brancas. Mesmo de forma velada, elas transmitem a mensagem de que tenho sorte e de que deveria me contentar por já ter chegado aonde cheguei.
Recentemente, a atriz Leslie Jones, da nova versão do filme “Caça Fantasmas”, deu uma entrevista para Whoopi Goldberg. Ela disse que, quando era criança e viu a Whoopi na TV, se deu conta de que também poderia chegar lá. Por que a representatividade negra é importante?
A partir do momento em que a população negra começa a se ver e se reconhecer em todos os espaços, as diferenças sociais diminuem e ganhamos muito em autoestima. Meu objetivo é que os negros, que são 57% da população do Brasil, sejam representados em todos os setores da sociedade: na mídia, nos livros didáticos e, inclusive, nos conselhos administrativos das empresas.
Há quem diga que o Brasil não é tão racista quanto outros países. Por exemplo, os EUA, que tiveram a segregação racial…
Mesmo não tendo uma segregação racial oficial no Brasil, há ambientes aonde o negro não vai. E é aí que o racismo se mostra, atualmente. O negro foi condicionado a não se autorizar a fazer algumas coisas. Nos shoppings e espaços comerciais, não há uma placa “só para brancos” mas, mesmo assim, muitas pessoas negras, quando frequentam esses lugares, são seguidas pelos seguranças e algumas chegam até a ser abordadas. Entrar em uma loja com milhares de brinquedos e ver só três bonecos que são negros, por exemplo, é algo violento e racista. Mas estamos tão acostumados que nem questionamos o absurdo.
A falta de representatividade é uma das razões para a autoestima do afrodescendente ainda ser baixa?
Também influenciam na baixa autoestima do negro a falta de oportunidades, seja na educação ou no mercado de trabalho. Quando entrei na faculdade, na Sciences Po [Instituto de Estudos Políticos de Paris], o mais difícil era enfrentar a voz que falava na minha cabeça: “Não, você não pode frequentar a escola da elite. Esse não é o seu lugar. Não, você não poderá enganá-los, pois não tem o mesmo nível que eles, não pode compartilhar o mesmo espaço”.
O que ajuda a elevar a autoestima do afrodescendente?
Crianças podem ser incentivadas com leituras que inspiram, pois há negros importantes na história, como André Rebouças, Machado de Assis e Teodoro Sampaio. Também vale ensiná-las que os inventores da geladeira, do marca-passo e da antena parabólica eram todos negros! Precisamos aprender –e cultivar em nosso meio– uma cultura de resistência, que não permita que nos curvemos a um preconceito racial que é diário e que nos faz sentir inferiores. Nesse sentido, devemos estabelecer um diálogo do qual os brancos participem, pois o racismo terá um fim apenas se houver um esforço de ambos os lados.
Como você enxerga a inserção das mulheres no mercado de trabalho?
No Brasil, há mais mulheres graduadas nas universidades do que homens, mas ainda precisamos ver esse dado transformar o mercado de trabalho. As mulheres são só 6% dos conselhos executivos. No cinema, temos só 3% de mulheres negras. Somos a primeira geração que pode ler, escrever, votar, trabalhar, casar ou não e optar por ter filhos ou não. Podemos ir atrás dos nossos sonhos, estudar e estamos começando a ter dignidade e poder econômico de maneira autônoma. Mas ainda existe um longo caminho a ser percorrido, mesmo no Brasil, onde temos a segunda maior população de negros, logo depois da Nigéria.
Você acredita que é preciso separar o feminismo negro do feminismo branco?
É essencial promover uma cultura que reconheça as necessidades específicas de cada mulher, seja branca ou negra. No Brasil, o feminismo ainda é branco, quando a maioria das brasileiras é negra –e não conseguimos superar essa barreira. A problemática da mulher branca, por exemplo, é que ela pode trabalhar há pouco tempo; a mulher negra, por sua vez, sempre trabalhou fora de casa.
Essa separação, de alguma forma, enfraquece a luta das mulheres?
Essa separação só enfraquece a luta das mulheres se nossas pautas atropelarem umas às outras. Cada movimento possui uma agenda própria. O feminismo e a luta contra o racismo precisam articular pautas unificadas, a fim de dar respostas consistentes aos nossos questionamentos.
Muitas pessoas não se consideram racistas, mas têm comportamentos preconceituosos. O que significa não ser racista?
Não ser racista é reconhecer que nós, negros, temos o direito de ocupar os mesmos espaços que, atualmente, são ocupados exclusivamente por pessoas brancas e que a cor de nossa pele não nos faz piores que os demais. É, também, aceitar que 57% da população brasileira, que é negra, represente cargos de liderança, papéis nas novelas e até desenhos animados. Não ser racista é ter empatia e compaixão com a causa negra.
Para Alexandra Loras, o empoderamento da mulher negra é ainda mais difícil de alcançarimagem: Alessandra Levtchenko/Divulgação
Do UOL, em São Paulo